Dona Rosa e seu
paletó de madeira
Triste manhã de domingo aquela para família de Sr.
Lorival. Depois de passar algumas semanas entre a vida e a morte no leito de
hospital, finalmente sua alma passou para o outro lado, deixando amigos e
familiares desolados. Dona Vitória estava inconformada com a partida de seu
esposo, assim como seu filho Inácio que tinha no pai um exemplo de hombridade.
Ali, na torturante sala de espera daquele hospital sombrio, estavam todos
lamentando a partida do patriarca, até seu filho caçula Alberto, que aparentava
uma breve embriaguez, como de costume.
Depois
da lástima notícia dada pelo médico de plantão, um funcionário da santa casa,
responsável pelo necrotério daquele insalubre hospital, vestindo um surrado
jaleco acinzentado, veio até a inconformada sala de espera comunicar aos
presentes a necessidade de reconhecer o corpo antes da sua liberação. O
primogênito encontrava-se tão arrasado, que não teve discernimento para
compreender o recado do funesto funcionário. Restou ao coitado Alberto, que
ainda inebriado, não se absteve da penosa responsabilidade.
Ao
acompanhar o moribundo funcionário em um tenebroso corredor obscuro, Alberto
foi sentindo um calafrio horripilante, algo que o lembrava de seu pavor por
cadáveres desde a infância. Por um segundo, a sobriedade súbita lhe trouxe um
arrependimento pela impensada atitude tomada, ainda na longínqua sala de
espera. Mas já era tarde, e aquele cinzento funcionário se encaminhava ao
macabro necrotério.
Quando
Alberto adentrou a gélida sala branca, encontravam-se ali apenas dois corpos
com invólucros panos brancos desbotados. O mecânico funcionário do hospital se
dirigiu ao leito esquerdo e, em um hábil movimento, levantou parte da coberta
para o rápido reconhecimento. Para acabar logo com aquela torturante tarefa,
Alberto, com um olho entreaberto e o outro cerrado, reconheceu agilmente o
velho corpo de seu saudoso pai. Tarefa cumprida, Alberto suspirou o ar dos
angustiados e voltou em dois tempos para aliviada sala de espera.
Já
na pequena capela, amigos e parentes consolavam a inexpressiva viúva,
entorpecida por calmantes e chás relaxantes. Outros se debruçavam sobre o
caixão, inconformados com a estranha aparência do defunto. Por causa da maldita
doença, o inchaço no rosto de Sr. Lorival despertava reações diversas dos
presentes. Uns lamentavam a terrível doença, outros questionavam a falta da
peculiar pinta de Sr. Lorival no canto esquerdo do pescoço, já outros, tão
desolados, nem reparavam as mudanças corporais do recém falecido.
Avançadas
horas do interminável velório, dois rapazes entraram apressadamente na singela
capela com ares pouco amigáveis. Poucos se atentaram pela presença dos
desconhecidos, quando um deles se aproximou do caixão e gritou: “essa aqui é
minha mãe!”. Ainda desatentos, alguns se entreolharam espantados com tal
afirmação, já outros estranharam tamanha ousadia da invasão seguida de acusação
daquele homem.
O
outro ainda esbravejou: “vocês roubaram a minha mãe! É ela que está aqui”,
apontando para o pobre defunto florido no caixão. Desta vez, o primogênito
reagiu, inconformado com tamanha petulância do insultuoso rapaz. “Quem é você
para dizer um absurdo desse? Este aqui é meu pai! Não basta estarmos passando
por esse momento difícil, você ainda invade o velório desrespeitando a nossa
dor e caluniando meu querido pai...”.
O
rapaz ainda inconformado retrucou: “Eu estava no hospital procurando o corpo da
minha saudosa mãezinha, quando me avisaram que já tinham levado para enterrar.
Deixaram o corpo de um velho lá e trouxeram o da minha mãe...”, seu irmão
completou: “alguém de vocês reconheceu errado o corpo e trouxe nossa mãe para
cá. Eu exijo que retirem o corpo dela desse caixão”. Nesse instante, todos
perplexos focaram seus olhares ao único responsável por tamanho absurdo. Mas
diante do sumiço de Alberto, todos se perguntaram: “onde está esse bêbado
desgraçado?”.
Agora
sim estava explicado o sumiço da inesquecível pinta de Sr. Lorival. Nem a pinta nem Sr. Lorival se encontravam
naquele pequeno caixão. A única coisa que pertencia ao falecido era o impecável
terno cinza chumbo bizarramente vestido na Dona Rosa, mãe dos alterados
rapazes. A questão agora era saber como trocar a roupa da falecida, uma vez que
a pobre criatura já se encontrava dura como uma rocha da era paleozóica. Os
filhos estavam decididos a retirar todo aparato florido e trocar o elegante
terno cinza chumbado pelo deslumbrante vestido florido, especialmente preparado
para vestir Dona Rosa em sua despedida. A essa altura, os presentes não
conseguiam disfarçar as risadas contidas durante o tumultuado velório.
Inácio,
traumatizado, queria terminar logo com a confusão instaurada pelo seu
atrapalhado irmão caçula. “Vamos fazer o seguinte: leva esse caixão do jeito
que está, e me entreguem o tal vestido da sua saudosa mãe. Vamos enterrar nosso
pai com o vestido mesmo e não se fala mais disso. No final, vai tudo para baixo
da terra mesmo, pelo menos os dois não vão ser enterrados despidos”.
Enfurecido,
um dos rapazes se sentiu afrontado e partiu para ignorância: “Então você acha
que eu vou enterrar minha mãezinha vestida de homem? Se você não se importa em
embonecar seu pai, que não tem nem o direito de se defender agora, o problema é
seu, mas eu não vou permitir um absurdo desse”!
Diante
do impasse, os filhos de ambos os defuntos resolveram entrar num acordo.
Rasgaram o ilustre terno cinza e improvisaram Dona Rosa com um estampado pano
florido em um vestido estilo “tomara que caia”, super adequado para ocasião. Já
Sr. Lorival, com sua inseparável pinta, recebeu um outro terno, azul celeste, bem
mais apropriado para inusitada despedida.
Caro
leitor deve estar se perguntando: “afinal, onde estava Alberto?”
Desnorteado,
o bêbado fugiu e, entre um tropeço e outro, saiu perambulando pelas catacumbas
no cemitério.
O mulato da gafieira
Mônica
era praticamente casada. Vivia um romance há seis anos com um cara bacana,
daqueles que fazem amizade fácil. Sentia-se realizada, e só não se casava
mesmo, de papel passado, porque não tinha dinheiro para bancar a festa. Ah... a
festa! Ela sonhava com uma grande recepção, com banda, jantar e muitos
convidados.
Só
faltava ela passar para o concurso público, e ele também. Os dois fizeram
direito e já estudavam juntos há dois anos. O trato era, quando o primeiro
passar na prova, já marcava a data do casamento.
Em meio
ao estresse dos estudos, da pressão diária, Mônica resolveu investir seu
talento na dança. Ingressou em uma academia no centro da cidade e começou suas
aulas na turma de iniciantes, sempre às terças e quintas. Em um ano, ela
dançava mais que mulata de escola de samba. Os estudos não foram esquecidos,
mas aquele empenho e dedicação de antes foi ficando para trás. Bem diferente de
seu namorado, que continuava estudando rigorosamente todos os dias.
No final
do ano, tinha a apresentação dos alunos no baile em comemoração ao ano novo.
Mônica estava empolgada com os ensaios. Conheceu uma turma nova, aprendeu novos
passos e marcava seus ensaios aos sábados e domingos. Nessa turma, Mônica
conheceu um mulato alto, que se destacava no samba e chamava atenção das damas
nos bailes.
Discretamente,
Mônica admirava aquele rapaz dançando na sua coreografia. Imaginava como ela se
encaixava perfeitamente no passo “puladinho” da gafieira, quando as coxas se
grudam formando um só corpo. Os ensaios continuavam até tarde e seu namorado já
começava implicar com as constantes demoras. Mas Mônica estava a fim de se
divertir e deixava o resmungo de seu namorado pra lá.
Mônica
foi se empolgando a cada passo novo da coreografia, até que o professor
resolveu colocar o tal rapaz mulato ao seu lado. Mônica não conseguiu disfarçar
sua simpatia e soltou um “agora sim vou dançar com alguém que sabe fazer
pegada”. A turma toda riu, o rapaz olhou com um olhar capcioso e Mônica
percebeu sua atirada nada discreta, ficando vermelha de tanta vergonha.
O
professor não perdeu tempo e arranjou de encaixar no meio da dança uma pegada
daquelas de deixar qualquer dama tonta. O tal mulato seria responsável por
rodopiar Mônica no ar, traçando o famoso “5 em 1” , quando todas as pernas da
dama passam pela cabeça, tronco, braço do homem, terminando a dama sentada no
colo dele. Pronto, o circo já estava armado. Mônica gostou da experiência e,
apesar da tontura, pedia para repetir o difícil passo.
A
apresentação no dia do baile foi perfeita, menos a cara de mau humor do
namorado, que não só assistiu de camarote o “5 em 1” da namorada no tal mulato,
como filmou tudo, a pedido de Mônica. O futuro promotor de justiça não sabia
para onde fugir, de tanta raiva que ficou. Mônica não entendeu tamanho “esculacho”
que levou do namorado e saiu arrasada do baile.
No dia
seguinte, o mulato mandou um torpedo “Oi, tudo bem? Ainda não entendi porque
você foi embora ontem do baile de repente, sem falar comigo. Aconteceu alguma
coisa? Qualquer coisa me liga, beijos”. Mônica ficou atônita, sem saber
disfarçar a sua cara de surpresa. Pela primeira vez, sentiu-se balançada e
parou para pensar o que estava acontecendo com seu namoro de anos.
Passou a
questionar por que seu namorado levava tão a serio uma rotina de estudos,
trabalho, responsabilidades e nunca tinha tempo para o divertimento. Nunca fez
questão de acompanhá-la nas aulas de dança. Não parecia ser aquele namorado tão
festeiro, alegre e brincalhão de outros tempos. E aquele rapaz da dança? Como
ele surgiu de repente em sua vida e em tão pouco tempo mexeu com seus
sentimentos de forma estranha? Sei lá, mas Mônica já não pensava como antes.
Uma coisa
ela tinha certeza: era fiel ao homem que amava. O problema era esse: o verbo
amar já não aparecia no presente, mas sim no pretérito imperfeito. Seu romance
já estava imperfeito há muito tempo, e uma traição não soava tão absurdo
assim...
Depois
daquele baile, já no ano seguinte, as turmas mudaram, e Mônica passou a fazer
aula às segundas e quartas. Justamente nos mesmos dias que o tal rapaz mulato.
Ele já era bem avançado na dança, mas como gostava de praticar bastante,
chegava sempre antes da sua aula para ajudar na turma anterior a sua. Ou seja,
a turma da Mônica.
Eles
passaram a dançar cada vez mais juntos, trocavam passos, tropeçavam,
consertavam, riam, debochavam, cochichavam... as aulas nunca foram tão
divertidas. E depois das aulas, ela dava um jeito de voltar com ele, ou
rachando um táxi ou dando uma carona até sua casa.
Em uma dessas
caronas, o rapaz diretamente lançou “o que está acontecendo com a gente?”.
“Oi?” desconversou Mônica, sem reação. Ele insistiu: “o que está rolando entre
nós dois? Eu tô a fim de você, e acho que você também tá...”
Não
demorou um minuto e eles se atracaram de um jeito louco, ali, dentro do carro
dela, parado no sinal, no centro da cidade. O negócio foi esquentando,
esquentando, Mônica não tinha fôlego para respirar direito e foi logo tirando a
camisa dele. O vidro fumê impedia que qualquer transeunte presenciasse aquele
assombro. Os beijos foram sendo prolongados com apertos, puxões, lambidas... um
tesão só. Após toda aquela tensão nervosa e intensa, os dois pararam, tentaram
se ajeitar como duas pessoas normais e ela, discretamente, deixou ele na porta
de casa, com um “até logo”.
O
namorado estava aguardando em casa, todo arrumado e perfumado, com uma garrafa
de espumante em uma mão e duas taças em outra. “Oi meu amor, precisamos
comemorar!!!! Eu passei no concurso! Saiu o resultado da prova hoje!!!”. Mônica
era uma mistura de alegria e depressão. Tinha acabado de se atracar com outro
homem em seu carro e agora estava diante de seu futuro marido, o futuro
promotor de justiça, todo feliz.
Mônica
saiu da dança, deixou academia, a turma, os amigos, as coreografias de fim de
ano e o tal rapaz mulato. Agora só tinha um objetivo: organizar sua tão sonhada
festa de casamento. Voltou a amar como nunca seu noivo, voltou a estudar para o
concurso e, segundo ela, voltou a ser feliz.
Apenas um quadro
Ele
estava cansado de viver só. Foram anos vivendo sozinho, cercado de amigos, mas
só. Era inevitável não imaginar um futuro a dois. Imaginava quando iria
apresentar sua namorada para família. Seu quarto tinha várias fotos de viagens,
festas e até sua formatura. Mas não havia uma foto com ela.
Parecia
algo fútil, peculiar da adolescência, mas a falta de um quadro na parede era o
retrato de uma vida frustrada, sem grandes paixões. Ele ainda se importava com
isso, mesmo já acostumado com sua vida de solteiro. Vivia num paradoxo interno,
por um lado curtia sua independência, por outro sentia falta de uma
companheira.
Ela
apareceu de repente. Não foi uma paixão avassaladora, nem uma conquista
desafiadora. Apenas aconteceu de forma inesperada. Em pouco tempo, uma coleção
de fotos foi reunida. Tudo era registrado, como se estivesse recuperando o
tempo perdido. O longo tempo que ficou sem ninguém ao seu lado.
Finalmente
montou um quadro com várias fotos românticas. Pendurou no quarto e ficou admirando
por dias. Aproveitou para trocar algumas fotos. Os amigos que já não eram tão
comuns, as meninas que provocavam ciúmes, os colegas das velhas farras, as
viagens inesquecíveis da adolescência aos poucos foram perdendo espaço para
ela. Ele foi apagando as lembranças de uma vida que não lhe pertencia mais.
Seus
discos não eram mais ouvidos. Sua prancha não via mais o mar há meses. Seus
gibis esquecidos embaixo da cama. Alguns amigos até ligavam insistindo uma
saída como nos velhos tempos, mas ele ignorava solenemente. Só tinha olhos para
ela.
Uma noite
ela ligou, dizendo que não estava feliz. Ele saiu de casa desesperado. Pegou o
carro do pai, arriscou sua vida a cada sinal fechado. Subiu desembestado e se
atirou na campainha.
- Oi.
- Você
sabe que horas são?
- Sei,
mas precisava te ver agora.
- Você
acordou meus pais, sabia?
-
Desculpa, mas eu precisava...
- Acho
que não dá mais...
- Por
quê?
- Você me
sufoca...
- Como
assim? Você não me ama mais?
- Não é
isso... eu gosto de você, mas é que...
- E o nosso
futuro? E nossas vidas?
- Você
não acha que está viajando demais? Temos só 22, cara.
- Vivi 20
anos sem você.
- Você é
carente. Isso é patético.
- O que
você está falando?
- Sabe de
uma coisa? Você só queria uma namorada. Você não se importa comigo de verdade.
Você só quer alguém do seu lado.
-
Mentirosa. Canalha! Como você faz isso comigo? Você está querendo reverter o
jogo. Quem está acabando comigo é você!
- Vá
embora! Amanhã a gente conversa.
O quadro.
Ele arrancou do seu quarto e com toda raiva lançou, despedaçando-se no chão. Era
apenas um quadro na parede. Aquelas fotos não significavam mais nada.
O novo apartamento
Joana
vivia um caso sério com Rodolfo. Tinha lá sua vida independente, morando
sozinha, depois de um casamento desfeito por falta de amor, e um emprego
qualquer coisa, mas que garantia pagar suas contas no final do mês. Estava
apaixonada. De um caso sério, Joana resolveu tomar uma atitude e mudar seu
status. Tinha pressa para ser mãe. Já havia passado dos trinta.
O único
problema era Rodolfo. Ele também já tinha um casamento desfeito, mas diferente
dela, esse deixou frutos. Uma filha mimada, uma ex-mulher louca e ciumenta.
Passou por um bom bocado com a ex de seu atual. Mas agüentou firme todos os
insultos e xingamentos gratuitos. E ainda suportava a presença mimada de sua
filhinha chata.
A família
de Rodolfo era outro problema. Na verdade, uma incógnita. Ela sabia que Rodolfo
vinha de família pobre, mas nunca viu de perto a situação dos pais. Fingiu que
era normal, passou despercebido, e seguiu em frente com seu caso mais que
sério. Estava decidida a viver com ele.
Joana
apostou alto. Resolveu comprar um apartamento maior, com direito a um quarto
para sua enteada, e outro para o bebê que viria em breve. Comprou com
a ajuda do pai um novo lar. Caquético, imundo, nojento, mas um novo apartamento
para eles. Os antigos moradores eram um casal de senhores que pareciam estar
separados há muitos anos, mas ainda conviviam sob o mesmo teto. O resultado era
uma casa quase abandonada, cercada de mofo, baratas e velhos carpetes
encardidos.
Mas Joana
estava decidida a ser feliz por ali. Resolveu quebrar tudo, não aproveitar nem
as maçanetas, e fazer uma grande reforma. Contratou um mestre de obras
conhecido de seu pai para mudar sua nova casa. Quando tudo estava indo bem, o
pedreiro sumiu sem deixar rastro. A obra ainda estava pela metade. O primeiro
desespero bateu. Todas as tentativas de encontrar o responsável por aquela
bagunça foram frustradas. Resolveu então buscar outro pedreiro. Este veio como
um tampa buraco, para tentar continuar a obra mal acabada. Pintou o apartamento
todo, trocou o piso dos cômodos, concluiu os dois banheiros. Mas a cozinha
ainda estava com a parede aberta, e os canos expostos. Outra baixa. O segundo
também resolveu abandonar o barco em meio ao turbilhão.
Bateu o
segundo desespero. Mas Joana estava decidida a ser feliz naquele lugar, então
buscou o terceiro pedreiro e este deveria ser seriamente de confiança.
Finalmente as tomadas foram instaladas, as maçanetas trocadas, as portas
pintadas. Faltavam apenas alguns retoques e detalhes finais. Joana já
encontrava-se mais tranqüila.
Pintou o
quarto de lilás para receber sua queria enteada nos finais de semana, e deixou
pré-preparado o futuro quarto do bebê. Ela tinha pressa para ser mãe. Já havia
passado dos trinta. A ex de Rodolfo deu uma trégua nos últimos meses. Joana
estava feliz em seu novo apartamento. Seria muito feliz ali.
Depois de
visitar os pais no final de semana, Joana volta para casa realizada. Encontra a
casa vazia, uma carta em cima da cama e uma sensação de medo no ar. “Estou
voltando para casa, não consigo mais me enganar, nem te enganar. Enquanto vivia
um conto de fadas ao seu lado, minha família precisava de mim. Não estou
agüentando esse sofrimento calado. Preciso voltar. Preciso ajudar meus pais.
Beijo”. E foi assim que Joana recebeu a notícia que mais um homem foi embora de
seu novo lar. Ok, não foi o pedreiro, mas o que importa nessa hora?
Ela
sonhou com o novo apartamento. Raspou a poupança de anos para reformá-lo todo.
Pintou o quarto de lilás para receber sua insuportável enteada mimada. Planejou
o quarto do bebê que agora não vem nem tão cedo. Ela continua tendo pressa para
ser feliz. Já passou dos trinta anos.
Enxaqueca
Eu sempre busco nas pessoas aquilo que há de melhor, mesmo quando
não há. Inimigos formamos quando queremos criar obstáculos. Basta ignorá-los,
não criar uma rede de intrigas para não nos abater.
Sempre ouvi piadinhas, insultos, comentários pejorativos. No início,
incomodava sim. Mas depois passei a ignorar, e foi melhor assim. Confiar no
próximo já é uma outra conversa. Há de confiarmos apenas naquelas que valem a
pena. Aquelas que irão fazer a diferença em sua rede social. Daí, posso dizer que
esbarrei na vida por muitos que disseram ser meus amigos, mas eu mesmo escolhi os
meus. Esses me aceitaram do jeito que sou. Sou sincero a minha maneira.
Hoje acordei com uma dor de cabeça insuportável. Já tomei remédio,
mas sabe quando a dor insiste permanecer durante o dia, só para lhe lembrar que
algo não está cem por cento com você mesmo?
Está lá no evangelho: “amai os vossos inimigos”, retribuir o mal com
bem. Eu já disse que eu não tenho inimigos. Pode parecer presunção minha em
afirmar isso, mas é verdade. Não vejo em ninguém próximo um potencial inimigo.
Pelo menos aparentemente. Mas quando digo “ignoro”, estou ciente que vou contra
aos princípios cristãos, porque “devemos amar ao próximo”, independente de
gostar ou não. Parece contraditório “amar” quando não “gostamos”, mas o
ensinamento está muito além da visão materialista e terrena. Enxergar o próximo
como irmão, mesmo quando este não me vê como um semelhante.
Às vezes tenho essa tal de enxaqueca. Ela dói, dói de forma
incontrolável.
Há dez anos deixei o colégio, e das lembranças estavam lá todos os
insultos e deboches. Restaram poucos amigos de verdade. Depois veio a
faculdade, e o ambiente já diversificado deixava de lado os tabus. Outros
amigos saíram de lá. No ambiente de trabalho já deparamos com personalidades
múltiplas. Uns falsos, outros chatos, aqueles que são gente boa, e outros que
você tem que conviver apenas. Mas há os que se tornam amigos pela convivência.
Conheço uma criança de apenas dois anos que parece ter mais
personalidade que muito adulto que conheço. Ela diz “não” para qualquer pessoa
que não lhe agrada. Não precisa ser simpática, não demonstra carisma, mas eu a
acho fantástica. Ela vai ter muitas enxaquecas na vida. Vão criar apelidos de
“mal-humorada”, “metidinha”, “insuportável”. Vão criar rótulos, deboches, e
jogá-la contra a parede. Se for preciso, vão chamá-la até de machão. Mas ela
não dependerá do seu sim para viver convencida.
Eles sempre serão perversos. Estão sempre prontos para julgar. Todos
estão prontos para criticar. Basta saber se queremos ser ou não criticados. O
que espero, sinceramente, é que um dia não tenha mais essa dor de cabeça
insuportável. Eu quero deixar de ignorá-los e aprender a compreendê-los, do
jeito que são. Retribuir o mal com o meu bem-fazer. Saber amá-los, e não apenas
ignorá-los, sem esperar nada em troca.
Tudo novo de novo
A vida já tinha me proporcionado quase tudo. Parece que as emoções transgridem nossos ideais. Não há palavras para decifrar o que estou sentindo neste momento. Nasci de uma família pobre. Meus pais vieram buscar por essas terras alguma esperança de sobrevida, já que os tempos de guerra devastavam cidades, empregos e quaisquer sonhos. Então, criaram suas raízes por aqui mesmo, construindo sua própria família a custo de pedras, tropeços e lágrimas. Com toda lástima e desnutrição, éramos felizes com as migalhas que nos restavam. Eu e meus irmãos crescemos acreditando num futuro bom, promissor. Não tínhamos medo nem vergonha de arriscar. Aceitávamos quase todo tipo de trabalho, desde que fosse honesto. Tornei-me um homem adulto por necessidade. Com treze anos já sabia o que era salário, e foi assim que comecei meu pé de meia. Fui um autodidata da vida. Sem ter consciência, aprendi a ser economista, engenheiro, enfermeiro, advogado e empreendedor, mesmo sem diploma de doutor. Juntei um dinheiro, construí minha casa, cuidei de meus pais doentes, defendi minha família na justiça e abri meu pequeno negócio. Depois de 30 anos de casado, perdi minha amada para a mais cruel das doenças. Mal sabia que ali o meu recomeço estava programado. Já era pai de dois homens feitos. Busquei neles o meu consolo, meu renascimento. Sim, porque para mim, já não havia mais vida. Mas esta nos surpreende a cada alvorada.
A minha maior felicidade era ver minha pequena Maria feliz. E mesmo diante da morte iminente, ela sorria com seus olhos de esperança. Ela acreditava em outra vida. Eu era descrente desse mundo invisível. Dizia-me que a plena felicidade não era deste mundo, por isso, confiava em algo que eu não podia acreditar. Eu estava surdo. Os anos se passaram, e minha dor ainda era imensurável. Mergulhava-me nas profundezas da amargura. Tornei-me um homem mordaz, duro e insensível. Aos subalternos, só lhes restavam os xingamentos e os insultos. Aos mais próximos, a impaciência e o pré-julgamento. Só aos meus filhos, tentava buscar alguma paz.
Em uma carta, um desconhecido afirmava com toda propriedade que minha pequena Maria havia mandado uma sublime mensagem. Meus princípios não permitiam crer na suposta carta além-túmulo. Seria impossível, pensei. Incrédulo, debochei.
Outra carta chegou, e esta o recado foi direto:
Querido João, não duvide das palavras que lhe envio. Sei que o véu que lhe cobre da verdade ainda lhe impede a compreensão plena. Mesmo assim, descrevo minhas esperanças para que possa encontrar a paz. Trago-lhe boas novas! Muito em breve estaremos juntos novamente. A dádiva da vida terrena me será agraciada, porque assim está escrito. Por isso, meu bem, não se aflige, pois a angústia lhe traz cólera. Beijos de sua pequena Maria.
O alento veio em códigos, pouco esclarecedores, portanto. As palavras soaram falsas, vagas, sem sentido. Afinal, quem era o calhorda capaz de zombar de minha profunda tristeza e ainda inventar tamanha falácia? Como minha pequena Maria poderia retornar do além-túmulo?
Por longos dias, mesmo ainda incrédulo, confesso que tal mensagem não saia de minha lembrança, às vezes de forma perturbadora. Até que uma boa nova realmente chegou alegrando o coração desse velho insosso. Meu filho mais velho me daria um neto.
Os sonhos desvendavam encontros entre almas afins. Mensagens subliminares despertavam minha curiosidade. Afinal, será que a carta estava certa? Não importava. Minha felicidade era tamanha com a chegada de meu amável netinho que nenhum assombro mais me assustava.
Estou na sala de espera. A luz de outono brilha como nunca, nos presenteando com um azul celestial límpido. Há tempos não me recordo de uma tarde tão ansiosa como esta. Não consigo esconder meu nervosismo. Ao meu lado, meu filho aguarda seu momento de glória. Será pai pela primeira vez. As horas se arrastam até que finalmente a enfermeira com leve sorriso em seu semblante ressurge no corredor da expectativa. “Nasceu! É uma linda menina”!