4 de maio de 2012

Dona Rosa e seu paletó de madeira


Triste manhã de domingo aquela para família de Sr. Lorival. Depois de passar algumas semanas entre a vida e a morte no leito de hospital, finalmente sua alma passou para o outro lado, deixando amigos e familiares desolados. Dona Vitória estava inconformada com a partida de seu esposo, assim como seu filho Inácio que tinha no pai um exemplo de hombridade. Ali, na torturante sala de espera daquele hospital sombrio, estavam todos lamentando a partida do patriarca, até seu filho caçula Alberto, que aparentava uma breve embriaguez, como de costume.

Depois da lástima notícia dada pelo médico de plantão, um funcionário da santa casa, responsável pelo necrotério daquele insalubre hospital, vestindo um surrado jaleco acinzentado, veio até a inconformada sala de espera comunicar aos presentes a necessidade de reconhecer o corpo antes da sua liberação. O primogênito encontrava-se tão arrasado, que não teve discernimento para compreender o recado do funesto funcionário. Restou ao coitado Alberto, que ainda inebriado, não se absteve da penosa responsabilidade.

Ao acompanhar o moribundo funcionário em um tenebroso corredor obscuro, Alberto foi sentindo um calafrio horripilante, algo que o lembrava de seu pavor por cadáveres desde a infância. Por um segundo, a sobriedade súbita lhe trouxe um arrependimento pela impensada atitude tomada, ainda na longínqua sala de espera. Mas já era tarde, e aquele cinzento funcionário se encaminhava ao macabro necrotério.

Quando Alberto adentrou a gélida sala branca, encontravam-se ali apenas dois corpos com invólucros panos brancos desbotados. O mecânico funcionário do hospital se dirigiu ao leito esquerdo e, em um hábil movimento, levantou parte da coberta para o rápido reconhecimento. Para acabar logo com aquela torturante tarefa, Alberto, com um olho entreaberto e o outro cerrado, reconheceu agilmente o velho corpo de seu saudoso pai. Tarefa cumprida, Alberto suspirou o ar dos angustiados e voltou em dois tempos para aliviada sala de espera.

Já na pequena capela, amigos e parentes consolavam a inexpressiva viúva, entorpecida por calmantes e chás relaxantes. Outros se debruçavam sobre o caixão, inconformados com a estranha aparência do defunto. Por causa da maldita doença, o inchaço no rosto de Sr. Lorival despertava reações diversas dos presentes. Uns lamentavam a terrível doença, outros questionavam a falta da peculiar pinta de Sr. Lorival no canto esquerdo do pescoço, já outros, tão desolados, nem reparavam as mudanças corporais do recém falecido.

Avançadas horas do interminável velório, dois rapazes entraram apressadamente na singela capela com ares pouco amigáveis. Poucos se atentaram pela presença dos desconhecidos, quando um deles se aproximou do caixão e gritou: “essa aqui é minha mãe!”. Ainda desatentos, alguns se entreolharam espantados com tal afirmação, já outros estranharam tamanha ousadia da invasão seguida de acusação daquele homem.

O outro ainda esbravejou: “vocês roubaram a minha mãe! É ela que está aqui”, apontando para o pobre defunto florido no caixão. Desta vez, o primogênito reagiu, inconformado com tamanha petulância do insultuoso rapaz. “Quem é você para dizer um absurdo desse? Este aqui é meu pai! Não basta estarmos passando por esse momento difícil, você ainda invade o velório desrespeitando a nossa dor e caluniando meu querido pai...”.

O rapaz ainda inconformado retrucou: “Eu estava no hospital procurando o corpo da minha saudosa mãezinha, quando me avisaram que já tinham levado para enterrar. Deixaram o corpo de um velho lá e trouxeram o da minha mãe...”, seu irmão completou: “alguém de vocês reconheceu errado o corpo e trouxe nossa mãe para cá. Eu exijo que retirem o corpo dela desse caixão”. Nesse instante, todos perplexos focaram seus olhares ao único responsável por tamanho absurdo. Mas diante do sumiço de Alberto, todos se perguntaram: “onde está esse bêbado desgraçado?”.

Agora sim estava explicado o sumiço da inesquecível pinta de Sr. Lorival.  Nem a pinta nem Sr. Lorival se encontravam naquele pequeno caixão. A única coisa que pertencia ao falecido era o impecável terno cinza chumbo bizarramente vestido na Dona Rosa, mãe dos alterados rapazes. A questão agora era saber como trocar a roupa da falecida, uma vez que a pobre criatura já se encontrava dura como uma rocha da era paleozóica. Os filhos estavam decididos a retirar todo aparato florido e trocar o elegante terno cinza chumbado pelo deslumbrante vestido florido, especialmente preparado para vestir Dona Rosa em sua despedida. A essa altura, os presentes não conseguiam disfarçar as risadas contidas durante o tumultuado velório.

Inácio, traumatizado, queria terminar logo com a confusão instaurada pelo seu atrapalhado irmão caçula. “Vamos fazer o seguinte: leva esse caixão do jeito que está, e me entreguem o tal vestido da sua saudosa mãe. Vamos enterrar nosso pai com o vestido mesmo e não se fala mais disso. No final, vai tudo para baixo da terra mesmo, pelo menos os dois não vão ser enterrados despidos”.

Enfurecido, um dos rapazes se sentiu afrontado e partiu para ignorância: “Então você acha que eu vou enterrar minha mãezinha vestida de homem? Se você não se importa em embonecar seu pai, que não tem nem o direito de se defender agora, o problema é seu, mas eu não vou permitir um absurdo desse”!

Diante do impasse, os filhos de ambos os defuntos resolveram entrar num acordo. Rasgaram o ilustre terno cinza e improvisaram Dona Rosa com um estampado pano florido em um vestido estilo “tomara que caia”, super adequado para ocasião. Já Sr. Lorival, com sua inseparável pinta, recebeu um outro terno, azul celeste, bem mais apropriado para inusitada despedida.

Caro leitor deve estar se perguntando: “afinal, onde estava Alberto?”

Desnorteado, o bêbado fugiu e, entre um tropeço e outro, saiu perambulando pelas catacumbas no cemitério.


crônica baseada em fatos reais

Nenhum comentário: