2 de dezembro de 2010

Conto de Natal – O velhinho do 404


O edifício Lar de São Francisco é um movimentado prédio localizado no caloroso bairro da Tijuca. Lá, moram várias gerações da típica classe média carioca, desde crianças de mães solteiras universitárias até aposentados, funcionários públicos. Entre eles, Sr. José: um coronel reformado que há 40 anos mora no apartamento 404, cuja janela de seu quarto dá de frente para a área de lazer do prédio, vulgo “playground”. Viúvo há dois anos, ele preferiu continuar morando sozinho no amplo apartamento de três quartos, mesmo depois do convite feito por sua filha mais velha para morar em sua casa, num condomínio de alto luxo na Barra da Tijuca.

Sua aposentadoria de militar reformado garante uma vida tranqüila, sem muitas regalias, mas com certo conforto. Sr. José, como todo aposentado tijucano, leva uma rotina pacata, para não dizer chata. Acorda às cinco da manhã, faz sua caminhada matinal em volta do Maracanã, toma seu café amargo, lê o jornal quase completo (ele dispensa a seção de esportes, porque acha uma besteira) e assiste à televisão, praticamente o dia inteiro, só parando para as devidas refeições e a soneca da tarde. Sua rotina muda um pouco quando Sr. José tem de resolver problemas no banco, ou quando há uma consulta marcada no médico da família.

As más línguas dizem que Sr. José é um senhor rabugento, mal humorado e resmungão, que vive reclamando da zoeira que as crianças fazem quando brincam na área de lazer do prédio. Intriga dos vizinhos. Sr. José é apenas um senhor de idade, que tem insônia e, portanto, demora muito para pegar no sono, por conta da gritaria no pátio interno do edifício. Mas segundo ele, nunca incomodou ninguém com suas queixas. Coitado. 

(cont.)

Já outros afirmam que Sr. José foi abandonado pela família, que apesar de grande – Sr. José tem três filhos, sete netos e um bisneto – moram quase todos longe, muito longe dele. Ele diz que não se incomoda com a falta de seus filhos e netos. Sabe que eles cresceram, constituíram suas famílias e cada um leva uma vida atribulada. Eles não têm tempo para visitá-lo. O último natal animado no velho apartamento da Tijuca foi há dois anos, o último natal da Dona Marília, antes de morrer. Depois que sua esposa se foi, ele passa o dia de natal na casa de sua filha mais velha, num condomínio de alto luxo na Barra da Tijuca.

Outra reclamação de Sr. José, sem fundamento, é que o militar é tão mão de vaca, pão duro mesmo, que é incapaz de ajudar na caixinha dos funcionários do prédio no final do ano. Outro absurdo. Coitado de Sr. José... só porque ele prefere carregar sozinho as sacolas do hortifruti, ao invés de pagar uma gorjeta ao menino que insiste oferecer ajuda, na porta da loja?

Diante de tantas calúnias, Sr. José resolveu tomar uma atitude radical. Determinou ao síndico do edifício “Lar de São Francisco” que todas as “ajudinhas” natalinas, independente do beneficiado – do entregador de jornal ao técnico do elevador – NÃO fossem encaminhadas a ele, por obséquio. Ele NÃO estava disposto a ajudar naquele ano e não gostaria de ser importunado de maneira alguma.

Pois bem, o síndico repassou o recado a todos os funcionários do prédio, inclusive ao zelador Joaquim, cuja família morava em um pequeno apartamento construído no andar do playground.

Joaquim era um dos funcionários mais antigos do prédio e foi justamente Sr. José quem o contratou, há mais de vinte anos, quando este fora síndico. Era um funcionário exemplar, muitíssimo educado e respeitador, e todos os moradores admiravam o empenho e dedicação daquele honrado funcionário. É válido lembrar que Joaquim não era apenas o zelador do velho prédio. Ele é uma espécie de “faz tudo”, sempre sendo chamado para “socorrer” alguém com um cano estourado, um ar condicionado a ser instalado, até uma lâmpada queimada.

Joaquim também era eternamente agradecido ao Sr. José, pois foi o militar aposentado quem convidou o zelador a residir no “Lar de São Francisco”, quando o pobre retirante não tinha onde morar com sua família há vinte anos. Desde então, Joaquim mora com sua esposa, seus dois filhos e uma netinha de sete anos no apartamento de um quarto na área de lazer do edifício. Com todo apreço que tinha pelo funcionário, Sr. José estava determinado: nem mesmo Joaquim receberia um tostão naquele fim de ano, como gratificação ou qualquer ajuda para a ceia natalina.

Até que em um dia de dezembro, Sr. José identificou uma diferente carta, diante das inúmeras correspondências mensais em sua caixinha dos correios. A carta era miúda dentre tantos envelopes pomposos e coloridos. A maioria era oferta de empréstimos de bancos, cartões de crédito, planos funerários - todos com destino certo: o lixo. E por muito pouco a tal cartinha não teve o mesmo destino, no meio de tanta baboseira.

Aquela carta intrigava Sr. José, porque não parecia ter vindo de um lugar muito longe. Não havia remetente nem estava endereçada a ninguém. Apenas era uma carta lacrada, escrita com uma letra muito infantil “para o papai Noel”. Sr. José cogitou logo que se tratava de uma brincadeira de mau gosto e pensou recorrer ao síndico sobre aquela estranha carta. Mas antes de tomar qualquer atitude, resolveu abrir em casa, no conforto de sua poltrona. Acendeu o abajú, apanhou seus óculos de leitura na gaveta e delicadamente abriu a carta muito bem colada. E começou sua leitura:

Querido Papai Noel,

Este ano eu estudei muito na escola e passei o ano todo pensando no presente de Natal. Eu queria ganhar um monte de coisas legais mas sei que você tem muitas crianças para dar presentes. Então eu pensei que só posso pedir um presente. Eu queria uma bicicleta para andar com as minhas amigas no prédio onde eu moro. Eu sou a única menina que não tem uma bicicleta onde eu moro. Todos os dias, as minhas amigas descem para o pátio para gente brincar. Todas as minhas amigas levam suas bicicletas e andam no pátio. O problema é que meu avô Joaquim também quer um presente do senhor. Ele está precisando de uma dentadura nova, porque a última vez que eu dei uma maça para ele, ele não comeu porque o dente estava quebrado. Daí, eu resolvi que este ano eu não vou pedir presente para mim, tá? Eu vou pedir um presente para o meu avô Joaquim. Obrigada. Beijo, Carolinne.

Aqueles nomes lhe pareciam bastante familiar, mas Sr. José não conseguia lembrar exatamente quem era Carolinne. Uma coisa estava certo: tratava-se de uma carta de uma criança para o bom velhinho, pela caligrafia bem precária e infantil. E ainda: o militar reformado percebeu que aquela carta podia ter sido endereçada por acaso a sua caixinha dos correios, inocentemente. Mas afinal, quem colocou aquela cartinha?

Sr. José ficou praticamente uma semana sem saber o que fazer. Todos os dias pela manha, ele pegava a carta, relia uma, duas, três vezes com a tentativa de descobrir o verdadeiro autor. Mesmo se resolvesse ter por um instante o ato de benevolência e atender aos pedidos da pobre Carolinne, como Sr. José iria entregar o presente? Qual o endereço daquela menina que morava num prédio, onde todas as meninas desciam com suas respectivas bicicletas para andar no pátio? E que avô era esse que precisava de uma dentadura? Nossa, que história estranha...

Enquanto o aposentado refletia sobre a origem da carta, gritos de crianças adentravam seu quarto de forma ensurdecedor. Irritado, Sr. José chegou à janela determinado a dar uma bronca severa às crianças mal educadas, quando deparou com algumas meninas, na faixa dos seis, sete anos, andando alegremente de bicicleta no pátio interno do prédio. Todas as meninas pareciam eufóricas com suas bicicletas modernas, arrojadas, rosas, lilás, com cestinhas de flores e adesivos coloridos. Por um segundo, Sr. José reconheceu aquelas benditas bicicletas! É claro! Eram as tais bicicletas da cartinha de natal! Aquelas que a pequena Carolinne tanto desejava para este próximo natal.

E para surpresa maior do senhor aposentado, ele lembrou que a Carolinne só podia ser a netinha do seu admirável funcionário Joaquim, a quem recordou também que há pouco tempo havia percebido que andava banguela. Tudo agora se encaixava. Carolinne gostaria de ganhar do papai Noel uma bicicleta parecida com as de duas amigas do prédio, mas preferiu pedir em sua carta uma dentadura nova para seu avô, agora banguela. Só restava uma dúvida ainda: quem colocou aquela carta em sua caixa de correio?

No dia 24 de dezembro, véspera do Natal, Sr. José estava pronto, bem arrumado e perfumado, aguardando sua filha mais velha para levá-lo até sua casa num condomínio de alto luxo na Barra da Tijuca. Assim que o carro chegou, o porteiro interfonou para Sr. José avisando da chegada de sua filha. Ele, então, pediu ao porteiro que fizesse o favor de subir até seu apartamento. Enquanto o porteiro não chegava, Sr. José se encaminhou até seu quarto, apanhou um embrulho pequeno e, com dificuldade, arrastou o segundo embrulho, que era grande e pesado.

Assim que o porteiro entrou em sua casa, Sr. José pediu, gentilmente, que este deixasse na porta do apartamento de Joaquim os dois embrulhos, com a garantia de que o rapaz não abrisse a boca para dizer quem era o responsável pelo ato. Na saída, deu-lhe uma boa gorjeta para felicidade e espanto do porteiro, e se despediu com um “feliz natal, meu filho”.

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