O edifício Lar de São Francisco é um movimentado prédio
localizado no caloroso bairro da Tijuca. Lá, moram várias gerações da típica
classe média carioca, desde crianças de mães solteiras universitárias até
aposentados, funcionários públicos. Entre eles, Sr. José: um coronel reformado
que há 40 anos mora no apartamento 404, cuja janela de seu quarto dá de frente
para a área de lazer do prédio, vulgo “playground”. Viúvo há dois anos, ele
preferiu continuar morando sozinho no amplo apartamento de três quartos, mesmo depois
do convite feito por sua filha mais velha para morar em sua casa, num
condomínio de alto luxo na Barra da Tijuca.
Sua aposentadoria de militar reformado garante uma vida
tranqüila, sem muitas regalias, mas com certo conforto. Sr. José, como todo
aposentado tijucano, leva uma rotina pacata, para não dizer chata. Acorda às
cinco da manhã, faz sua caminhada matinal em volta do Maracanã, toma seu café
amargo, lê o jornal quase completo (ele dispensa a seção de esportes, porque
acha uma besteira) e assiste à televisão, praticamente o dia inteiro, só
parando para as devidas refeições e a soneca da tarde. Sua rotina muda um pouco
quando Sr. José tem de resolver problemas no banco, ou quando há uma consulta marcada
no médico da família.
As más línguas dizem que Sr. José é um senhor rabugento,
mal humorado e resmungão, que vive reclamando da zoeira que as crianças fazem
quando brincam na área de lazer do prédio. Intriga dos vizinhos. Sr. José é
apenas um senhor de idade, que tem insônia e, portanto, demora muito para pegar
no sono, por conta da gritaria no pátio interno do edifício. Mas segundo ele,
nunca incomodou ninguém com suas queixas. Coitado.
Já outros afirmam que Sr. José foi abandonado pela família,
que apesar de grande – Sr. José tem três filhos, sete netos e um bisneto –
moram quase todos longe, muito longe dele. Ele diz que não se incomoda com a
falta de seus filhos e netos. Sabe que eles cresceram, constituíram suas
famílias e cada um leva uma vida atribulada. Eles não têm tempo para visitá-lo.
O último natal animado no velho apartamento da Tijuca foi há dois anos, o
último natal da Dona Marília, antes de morrer. Depois que sua esposa se foi,
ele passa o dia de natal na casa de sua filha mais velha, num condomínio de
alto luxo na Barra da Tijuca.
Outra reclamação de Sr. José, sem fundamento, é que o
militar é tão mão de vaca, pão duro mesmo, que é incapaz de ajudar na caixinha
dos funcionários do prédio no final do ano. Outro absurdo. Coitado de Sr. José...
só porque ele prefere carregar sozinho as sacolas do hortifruti, ao invés de
pagar uma gorjeta ao menino que insiste oferecer ajuda, na porta da loja?
Diante de tantas calúnias, Sr. José resolveu tomar uma
atitude radical. Determinou ao síndico do edifício “Lar de São Francisco” que
todas as “ajudinhas” natalinas, independente do beneficiado – do entregador de
jornal ao técnico do elevador – NÃO fossem encaminhadas a ele, por obséquio.
Ele NÃO estava disposto a ajudar naquele ano e não gostaria de ser importunado
de maneira alguma.
Pois bem, o síndico repassou o recado a todos os
funcionários do prédio, inclusive ao zelador Joaquim, cuja família morava em um
pequeno apartamento construído no andar do playground.
Joaquim era um dos funcionários mais antigos do prédio e
foi justamente Sr. José quem o contratou, há mais de vinte anos, quando este fora
síndico. Era um funcionário exemplar, muitíssimo educado e respeitador, e todos
os moradores admiravam o empenho e dedicação daquele honrado funcionário. É
válido lembrar que Joaquim não era apenas o zelador do velho prédio. Ele é uma
espécie de “faz tudo”, sempre sendo chamado para “socorrer” alguém com um cano
estourado, um ar condicionado a ser instalado, até uma lâmpada queimada.
Joaquim também era eternamente agradecido ao Sr. José, pois
foi o militar aposentado quem convidou o zelador a residir no “Lar de São
Francisco”, quando o pobre retirante não tinha onde morar com sua família há
vinte anos. Desde então, Joaquim mora com sua esposa, seus dois filhos e uma
netinha de sete anos no apartamento de um quarto na área de lazer do edifício.
Com todo apreço que tinha pelo funcionário, Sr. José estava determinado: nem
mesmo Joaquim receberia um tostão naquele fim de ano, como gratificação ou
qualquer ajuda para a ceia natalina.
Até que em um dia de dezembro, Sr. José identificou uma
diferente carta, diante das inúmeras correspondências mensais em sua caixinha
dos correios. A carta era miúda dentre tantos envelopes pomposos e coloridos. A
maioria era oferta de empréstimos de bancos, cartões de crédito, planos
funerários - todos com destino certo: o lixo. E por muito pouco a tal cartinha
não teve o mesmo destino, no meio de tanta baboseira.
Aquela carta intrigava Sr. José, porque não parecia ter
vindo de um lugar muito longe. Não havia remetente nem estava endereçada a
ninguém. Apenas era uma carta lacrada, escrita com uma letra muito infantil
“para o papai Noel”. Sr. José cogitou logo que se tratava de uma brincadeira de
mau gosto e pensou recorrer ao síndico sobre aquela estranha carta. Mas antes
de tomar qualquer atitude, resolveu abrir em casa, no conforto de sua poltrona.
Acendeu o abajú, apanhou seus óculos de leitura na gaveta e delicadamente abriu
a carta muito bem colada. E começou sua leitura:
Querido Papai Noel,
Este ano eu estudei
muito na escola e passei o ano todo pensando no presente de Natal. Eu queria
ganhar um monte de coisas legais mas sei que você tem muitas crianças para dar
presentes. Então eu pensei que só posso pedir um presente. Eu queria uma
bicicleta para andar com as minhas amigas no prédio onde eu moro. Eu sou a
única menina que não tem uma bicicleta onde eu moro. Todos os dias, as minhas
amigas descem para o pátio para gente brincar. Todas as minhas amigas levam
suas bicicletas e andam no pátio. O problema é que meu avô Joaquim também quer
um presente do senhor. Ele está precisando de uma dentadura nova, porque a
última vez que eu dei uma maça para ele, ele não comeu porque o dente estava
quebrado. Daí, eu resolvi que este ano eu não vou pedir presente para mim, tá?
Eu vou pedir um presente para o meu avô Joaquim. Obrigada. Beijo, Carolinne.
Aqueles nomes lhe pareciam bastante familiar, mas Sr. José
não conseguia lembrar exatamente quem era Carolinne. Uma coisa estava certo:
tratava-se de uma carta de uma criança para o bom velhinho, pela caligrafia bem
precária e infantil. E ainda: o militar reformado percebeu que aquela carta
podia ter sido endereçada por acaso a
sua caixinha dos correios, inocentemente. Mas afinal, quem colocou aquela
cartinha?
Sr. José ficou praticamente uma semana sem saber o que
fazer. Todos os dias pela manha, ele pegava a carta, relia uma, duas, três
vezes com a tentativa de descobrir o verdadeiro autor. Mesmo se resolvesse ter
por um instante o ato de benevolência e atender aos pedidos da pobre Carolinne,
como Sr. José iria entregar o presente? Qual o endereço daquela menina que
morava num prédio, onde todas as meninas desciam com suas respectivas
bicicletas para andar no pátio? E que avô era esse que precisava de uma
dentadura? Nossa, que história estranha...
Enquanto o aposentado refletia sobre a origem da carta,
gritos de crianças adentravam seu quarto de forma ensurdecedor. Irritado, Sr.
José chegou à janela determinado a dar uma bronca severa às crianças mal
educadas, quando deparou com algumas meninas, na faixa dos seis, sete anos,
andando alegremente de bicicleta no pátio interno do prédio. Todas as meninas
pareciam eufóricas com suas bicicletas modernas, arrojadas, rosas, lilás, com
cestinhas de flores e adesivos coloridos. Por um segundo, Sr. José reconheceu
aquelas benditas bicicletas! É claro! Eram as tais bicicletas da cartinha de
natal! Aquelas que a pequena Carolinne tanto desejava para este próximo natal.
E para surpresa maior do senhor aposentado, ele lembrou que
a Carolinne só podia ser a netinha do seu admirável funcionário Joaquim, a quem
recordou também que há pouco tempo havia percebido que andava banguela. Tudo
agora se encaixava. Carolinne gostaria de ganhar do papai Noel uma bicicleta
parecida com as de duas amigas do prédio, mas preferiu pedir em sua carta uma
dentadura nova para seu avô, agora banguela. Só restava uma dúvida ainda: quem
colocou aquela carta em sua caixa de correio?
No dia 24 de dezembro, véspera do Natal, Sr. José estava
pronto, bem arrumado e perfumado, aguardando sua filha mais velha para levá-lo
até sua casa num condomínio de alto luxo na Barra da Tijuca. Assim que o carro
chegou, o porteiro interfonou para Sr. José avisando da chegada de sua filha.
Ele, então, pediu ao porteiro que fizesse o favor de subir até seu apartamento.
Enquanto o porteiro não chegava, Sr. José se encaminhou até seu quarto, apanhou
um embrulho pequeno e, com dificuldade, arrastou o segundo embrulho, que era
grande e pesado.
Assim que o porteiro entrou em sua casa, Sr. José pediu,
gentilmente, que este deixasse na porta do apartamento de Joaquim os dois
embrulhos, com a garantia de que o rapaz não abrisse a boca para dizer quem era
o responsável pelo ato. Na saída, deu-lhe uma boa gorjeta para felicidade e
espanto do porteiro, e se despediu com um “feliz natal, meu filho”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário