Triste manhã de domingo aquela para família de Sr.
Lorival. Depois de passar algumas semanas entre a vida e a morte no leito de
hospital, finalmente sua alma passou para o outro lado, deixando amigos e
familiares desolados. Dona Vitória estava inconformada com a partida de seu
esposo, assim como seu filho Inácio que tinha no pai um exemplo de hombridade.
Ali, na torturante sala de espera daquele hospital sombrio, estavam todos
lamentando a partida do patriarca, até seu filho caçula Alberto, que aparentava
uma breve embriaguez, como de costume.
Depois
da lástima notícia dada pelo médico de plantão, um funcionário da santa casa,
responsável pelo necrotério daquele insalubre hospital, vestindo um surrado
jaleco acinzentado, veio até a inconformada sala de espera comunicar aos
presentes a necessidade de reconhecer o corpo antes da sua liberação. O
primogênito encontrava-se tão arrasado, que não teve discernimento para
compreender o recado do funesto funcionário. Restou ao coitado Alberto, que
ainda inebriado, não se absteve da penosa responsabilidade.
Ao
acompanhar o moribundo funcionário em um tenebroso corredor obscuro, Alberto
foi sentindo um calafrio horripilante, algo que o lembrava de seu pavor por
cadáveres desde a infância. Por um segundo, a sobriedade súbita lhe trouxe um
arrependimento pela impensada atitude tomada, ainda na longínqua sala de
espera. Mas já era tarde, e aquele cinzento funcionário se encaminhava ao
macabro necrotério.
Quando
Alberto adentrou a gélida sala branca, encontravam-se ali apenas dois corpos
com invólucros panos brancos desbotados. O mecânico funcionário do hospital se
dirigiu ao leito esquerdo e, em um hábil movimento, levantou parte da coberta
para o rápido reconhecimento. Para acabar logo com aquela torturante tarefa,
Alberto, com um olho entreaberto e o outro cerrado, reconheceu agilmente o
velho corpo de seu saudoso pai. Tarefa cumprida, Alberto suspirou o ar dos
angustiados e voltou em dois tempos para aliviada sala de espera.
Já
na pequena capela, amigos e parentes consolavam a inexpressiva viúva,
entorpecida por calmantes e chás relaxantes. Outros se debruçavam sobre o
caixão, inconformados com a estranha aparência do defunto. Por causa da maldita
doença, o inchaço no rosto de Sr. Lorival despertava reações diversas dos
presentes. Uns lamentavam a terrível doença, outros questionavam a falta da
peculiar pinta de Sr. Lorival no canto esquerdo do pescoço, já outros, tão
desolados, nem reparavam as mudanças corporais do recém falecido.
Avançadas
horas do interminável velório, dois rapazes entraram apressadamente na singela
capela com ares pouco amigáveis. Poucos se atentaram pela presença dos
desconhecidos, quando um deles se aproximou do caixão e gritou: “essa aqui é
minha mãe!”. Ainda desatentos, alguns se entreolharam espantados com tal
afirmação, já outros estranharam tamanha ousadia da invasão seguida de acusação
daquele homem.
O
outro ainda esbravejou: “vocês roubaram a minha mãe! É ela que está aqui”,
apontando para o pobre defunto florido no caixão. Desta vez, o primogênito
reagiu, inconformado com tamanha petulância do insultuoso rapaz. “Quem é você
para dizer um absurdo desse? Este aqui é meu pai! Não basta estarmos passando
por esse momento difícil, você ainda invade o velório desrespeitando a nossa
dor e caluniando meu querido pai...”.
O
rapaz ainda inconformado retrucou: “Eu estava no hospital procurando o corpo da
minha saudosa mãezinha, quando me avisaram que já tinham levado para enterrar.
Deixaram o corpo de um velho lá e trouxeram o da minha mãe...”, seu irmão
completou: “alguém de vocês reconheceu errado o corpo e trouxe nossa mãe para
cá. Eu exijo que retirem o corpo dela desse caixão”. Nesse instante, todos
perplexos focaram seus olhares ao único responsável por tamanho absurdo. Mas
diante do sumiço de Alberto, todos se perguntaram: “onde está esse bêbado
desgraçado?”.
Agora
sim estava explicado o sumiço da inesquecível pinta de Sr. Lorival. Nem a pinta nem Sr. Lorival se encontravam
naquele pequeno caixão. A única coisa que pertencia ao falecido era o impecável
terno cinza chumbo bizarramente vestido na Dona Rosa, mãe dos alterados
rapazes. A questão agora era saber como trocar a roupa da falecida, uma vez que
a pobre criatura já se encontrava dura como uma rocha da era paleozóica. Os
filhos estavam decididos a retirar todo aparato florido e trocar o elegante
terno cinza chumbado pelo deslumbrante vestido florido, especialmente preparado
para vestir Dona Rosa em sua despedida. A essa altura, os presentes não
conseguiam disfarçar as risadas contidas durante o tumultuado velório.
Inácio,
traumatizado, queria terminar logo com a confusão instaurada pelo seu
atrapalhado irmão caçula. “Vamos fazer o seguinte: leva esse caixão do jeito
que está, e me entreguem o tal vestido da sua saudosa mãe. Vamos enterrar nosso
pai com o vestido mesmo e não se fala mais disso. No final, vai tudo para baixo
da terra mesmo, pelo menos os dois não vão ser enterrados despidos”.
Enfurecido,
um dos rapazes se sentiu afrontado e partiu para ignorância: “Então você acha
que eu vou enterrar minha mãezinha vestida de homem? Se você não se importa em
embonecar seu pai, que não tem nem o direito de se defender agora, o problema é
seu, mas eu não vou permitir um absurdo desse”!
Diante
do impasse, os filhos de ambos os defuntos resolveram entrar num acordo.
Rasgaram o ilustre terno cinza e improvisaram Dona Rosa com um estampado pano
florido em um vestido estilo “tomara que caia”, super adequado para ocasião. Já
Sr. Lorival, com sua inseparável pinta, recebeu um outro terno, azul celeste, bem
mais apropriado para inusitada despedida.
Caro
leitor deve estar se perguntando: “afinal, onde estava Alberto?”
Desnorteado,
o bêbado fugiu e, entre um tropeço e outro, saiu perambulando pelas catacumbas
no cemitério.
crônica baseada em fatos reais
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