Oito de dezembro de 1994. Esta foi a data que meus avós Hugo
e Lugenira escolheram para me presentear com o piano. Para muitos, apenas um
instrumento musical. Para mim, um presente de valor inestimado, que carrega
muitas histórias, sonhos e um amor incondicional.
Quando tinha apenas quatro anos de idade, pedi ao papai Noel
um piano. Meus pais não entenderam minha escolha, afinal, não havia músico na
família, muito menos um piano na casa de ninguém próximo. Mesmo assim, eles
atenderem meu pedido e, naquele ano, o papai Noel do prédio (aquele vizinho que
se vestia de papai Noel na festa de natal do play) me entregou um piano de
armário proporcional ao meu tamanho.
Aos seis anos, minha mãe, por incentivo de meu avô materno,
me matriculou no Conservatório Nacional de Música, na Tijuca, quando iniciei os
estudos de teoria musical e prática de piano. Lá conheci tia Mônica, que começava
na época sua carreira de professora, tendo como sua orientadora e parceira a
também professora tia Cecília. Desse tempo, guardo poucas lembranças das aulas.
Apesar do pouco tempo que fiquei por lá, recordo-me das audições, quando
sorteávamos na hora qual prova iríamos tocar. Havia sempre duas opções, A e B,
e sempre rezávamos para cair aquela que tínhamos estudado mais ou que era mais
fácil. Geralmente, a prova tinha apresentação de uma escala musical, em que os
dedos gordos e pequenos nem alcançavam direito as oitavas no teclado, seguida de
um exercício de dedilhado e uma música ensaiada previamente. As mãos suadas não
disfarçavam o nervosismo, e aquela tensão na antessala era prova que não havia
diferença entre jovens e crianças durante avaliação. No final da audição,
saíamos da sala e ficávamos ansiosos esperando a nota da banca.
Aos oito anos, meu avô conseguiu uma vaga na Escola de
Música Villa Lobos. Na época, fiz uma prova em que uma das etapas era
reconhecer, apenas ouvindo o som do gravador, qual instrumento era executado.
Infelizmente, na época não era possível ingressar na aula de piano. Por isso,
tinha que passar primeiro pelas aulas dos instrumentos de sopro, depois
percussão para no final seguir com os de corda (piano é considerado instrumento
de corda, para quem não sabe). Recordo-me que não foi um período muito feliz o
tempo que ia com meu avô às aulas de flauta doce no velho prédio da Escola,
próximo ao largo da Carioca, centro do Rio. Minhas impressões eram as piores
possíveis, daquele lugar que fedia a mofo, com aparência de largado, num lugar
bem distante da minha casa. Depois de três anos, não aguentei mais e pedi para
sair da escola.
Durante essa fase, minhas professoras do Conservatório
abriram um estúdio, onde vários professores, além delas, lecionavam aulas de
piano, teclado, violão, bateria e tantos outros instrumentos. O Stúdio M&C
era praticamente minha terceira casa (a segunda era a casa dos meus avós). Lá,
eu passei o final da infância até minha adolescência, convivendo não só com os
professores de música, mas também tendo as minhas experiências nas aulas de
teatro amador. Como sempre fui muito comunicador, era praticamente o relações
públicas do Stúdio, porque conhecia quase todos os alunos e professores. Além
das audições, guardo grandes recordações das apresentações musicais de fim de
ano. Enquanto a maioria dos alunos ficava nervosa com as apresentações, eu
disfarçava meu nervosismo fazendo piada dos meus próprios erros. Eu era tão
cara de pau que se eu errasse durante a apresentação, eu não parava de tocar e
fazia praticamente um solo com novo arranjo, até conseguir retornar para o que
estava escrito na partitura. É lógico que alguns percebiam, principalmente
minhas professoras e minha família, mas para o restante da plateia, era como se
a música tivesse um arranjo diferente.
Eu não gostava das aulas de teoria musical. Achava chato
demais decorar as posições das notas, os tempos, as claves etc. Tinha preguiça
de ler partitura, e por isso decorava a música inteira para evitar olhar para ela.
Isso me gerou algumas broncas da tia Cecília, mesmo com aquele jeito risonho
dela. Já tia Mônica era espalhafatosa, no bom sentido, e dava uns murros no
piano, quando eu perdia o compasso. Eu chegava saltar do banco dos sustos que ela me dava.
A reclamação era sempre a mesma: “Mário, você precisa ensaiar mais em casa. Não
adianta deixar para estudar a música só durante a aula, porque assim não vai
sair nunca!”. E aí que era o problema. Faltava um piano para ensaiar em casa.
Eu tinha um teclado, que não fazia o mesmo efeito.
Aos doze anos, já não acreditava em papai Noel, mas meu
desejo ainda era ganhar um piano de verdade. Foi quando meus queridos avós
resolveram fazer uma surpresa. Com muito sacrifício, eles conseguiram juntar um
bom dinheiro e compraram um piano, que não era novo, mas muito bom. O presente
seria para o natal, mas eles não esperaram a data e resolveram me presentear
alguns dias antes.
Coincidência ou não, nesse mesmo dia morria um dos músicos
mais queridos do Brasil, a quem muito admiro, Antônio Carlos Jobim. E a partir
desse dia, eu passei a me dedicar aos estudos com meu piano. Até meus dezoito
anos, fiz minhas aulas no Stúdio M&C, quando acabei deixando a prática para
focar no vestibular. Desde então, o velho piano ficou um pouco de lado,
esquecido na sala.
Se antes, meu maior prazer era reunir a família para minhas
“audições domésticas”, hoje ele é meu refúgio. Em 2007, meu maior incentivador
e incansável ouvinte partiu desse plano, e voltar aos teclados se tornou uma
tarefa bastante difícil. Desde então, não escuto mais seus calorosos aplausos,
nem sinto mais seus abraços de parabéns. Meu saudoso avô Hugo foi com certeza o
meu maior fã, pois era o único que sentava ao meu lado todas as vezes que eu
ensaiava. E com toda paciência do mundo, era quem acompanhava os acertos e
erros nos dedilhados. Nas apresentações, era o primeiro da fila, o primeiro a
aplaudir e o primeiro a me dizer que o talento nas bastava, era preciso ensaiar,
ensaiar muito.
Apesar de não ter levado os estudos adiante e praticamente
ter parado de tocar, o velho piano continua reinando em minha sala. Um dia
pensei em me desfazer dele. Mas
quando olho para ele, não vejo apenas um piano. Como descrevi, ali estão as
melhores recordações da minha vida. Ele representa o bem mais precioso que
tenho hoje, sem dúvida. E minha maior alegria é poder, mesmo com os dedos
enferrujados, sem aquela prática de antes, sentar no banco e tocar. Continuo
tocando para mim mesmo, pelo prazer de executar uma boa música, pelo prazer de
ouvir (mesmo desafinado) as notas emitidas pelas velhas cordas. Continuo
tocando por ele, principalmente, porque sei que hoje, onde estiver, tem ouvidos
mais apurados do que nunca.
Um comentário:
Meu filho, continue a tocar, pois música nos dá força para suportamos os problemas do dia a dia. Beijos do seu também fã, seu pai.
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